Começo esta crónica, correndo o risco de passar uma linha vermelha, por explicar o que para mim constitui uma atitude que poderia denominar como “punk”. O conceito é vasto. Não se inscreve em nenhum tipo de elaboração anarquista. Radica na concretização de “lutas”. De ideais novos. Mas, também, na demanda de figuras tutelares, inspiradoras, para que tal seja possível. Precisamos, a todo o momento e na falta de “religiões”, de novos focos de luz. Que façam frente aos alvos de sempre. Sem qualquer tipo de estagnação filosófica. Contudo: misturada, naturalmente, com uma certa intemporalidade de base. Ou, pelo menos, sem retracção total de valores antecedentes. Porque, a meu ver, de nada serve uma mudança de paradigma se entrar em choque com os limites que fazem de nós humanos. Isto abarca tudo o que mobiliza uma sociedade inteira em termos de manifestações culturais: o jornalismo, a música, o teatro, o cinema, a política, o ensaio filosófico. Não adianta, por estarmos em crise sistémica, acharmos que tudo se resolve, apenas, através do combate às instituições “tradicionais”. Acreditanto que através de uma espécie de modelagem radical “externa”, estrutural, digital e tecnológica, se resolverão todos os problemas sociais. Por vezes: olharmos para o passado pode levar-nos ao futuro. Mas, para isso, convém tentarmos perceber o que já está a acontecer. Tal implica algo não muito popular nos dias que correm: olharmos para dentro. E as directivas civilizacionais e comerciais de Silicon Valley, que “contaminam” o resto do mundo, são bem menos progressistas do que se quer fazer parecer. São, no fundo, uma continuação. Um espremer das forças de mercado. Agora em direcção aos “nichos”. À instabilidade perpétua.
Parto, por esta razão, de uma espécie de vazio que encontro, há anos, em termos de circulação informativa. Porque em termos proporcionais: a crítica à sociedade totalitária tecnológica e digital, contrariamente a muito do que se escreveu, e que se filmou, no século XX, não é, salvo alguns artigos de opinião e outros apontamentos, ainda mainstream. Começa, só agora e apesar da excessiva propaganda em sentido contrário – aliás: por causa dela -, lentamente a afirmar-se. Principalmente devido ao mediático caso das escutas posto em circulação por Chelsea Snowden. Uma análise extensa e inteligente foi, até agora e apesar das evidências para quem quisesse estar atento, evitada. Poucos autores actuais a têm levado em consideração. Poucos jornalistas nacionais – talvez convenientemente – acharam que o facto merecia atenção. Assim como as redes sociais. Principalmente elas: as redes sociais.
Mas não se trata apenas de uma questão de propaganda ou de vontade de fuga e ilusão: os objectivos civilizacionais, há poucos anos atrás, eram um pouco mais definíveis. O poder político e empresarial estava um pouco menos às escuras. Não se tinha tornado socialmente mais escondido, perverso e sofisticado. O poder, seja de que ordem for, nunca desaparecerá. Metamorfoseia-se. Transmuta-se em eufemismo. Limita-se a rodopiar em volta de novos actores. Esconde-se por trás de novas instituições, palavras mansas e um tom de voz um pouco mais suave. A atitude de combate mediática e populacional não está na ordem do dia. Pelo contrário: viramo-nos para os “antigos” alvos. Que são bem mais fáceis de se vislumbrar. Como estamos de costas viradas: continuamos com os mesmos alvos. Os mesmos objectivos sociais e políticos. O contrário exige, devido à complexidade comunicacional em que vivemos enredados, uma maior atenção. Leitura intensa, com calma, de livros interpretativos – essa dificuldade – de pendor “tradicional”. Dos milhares de artigos com direcção contrária que são diáriamente postados através da internet. Para que sejam, com alguma distância, analisados. Para que se possam identificar tiques, repetições e, principalmente, intenções.
De I- Pad na mão, Smartphone na outra, a internet no laptop e a televisão no fundo da sala de casa para que não tenhamos um segundo de vida sem “conhecimento” e uma grande parte de desinformação: os sentidos tornaram-se “entupidos”. Perdemos o sentido do interior. O que resvala para uma certa apatia e diminuição de perguntas civilizacionais. As que se poderiam fazer – e não o são – ao sistema político e ideológico, agora, em constante mutação. Aquele que nos permite a utilização e o favorecimento de toda a tecnologia que temos, cada vez mais, à disposição. Que massifica. Nos torna amaciados. Impedindo uma maior diversidade cultural e social. Não andamos, por exemplo, no mesmo passatempo há cerca de 15 anos?
Porque são as gerações mais novas quem interessa mobilizar: grande parte da música que se ouve hoje em dia na rádio e mesmo na internet é de índole, tendencialmente, escapista. Apolítica. Um “LSD”. Placebo de curto prazo. Indolor. É infantil e, por esta razão, não perturba quase ninguém. As chamadas de atenção deslizam para o “grunhido” gratuito: “Who cares”, “Whatever” ou “I´m bored” são expressões recorrentes na “geração” de todos os gadgets. Não encontramos generalizada a “violência” verbal – contra a ordem vigente – de um Henry Rollins; o choque mediático provocado pela inversão da bandeira norte- americana por parte de uns Rage Against The Machine no palco de uma das edições dos prémios da MTV quando o canal tinha, nos velhos e, por agora, mais ou menos esquecidos anos noventa, alguma coisa para dizer. Antes de se ter convertido em mais um comum transmissor de reality shows; a inteligência in your face dos Clawfinger. Para citar, apenas, nomes com alguma visibilidade comercial. E o facto de a terem dizia muito. Traziam, além de uma pose menos confecionada por estatísticas, mensagem e interpretação. Coragem para assumir riscos. Em expor uma definição pessoal. Sem medo de parecerem “elitistas” quanto ao alertar de consciências. Um ligeiro “perigo” encontrado nos dias de hoje pela ultra- vulgarização de um falso conceito “democrático” como está, neste momento, a ser favorecido. De facto: parece existir uma certa “anulação” em curso, relativamente a determinados assuntos, que almeja instaurar uma sensação de “não valer a pena” porque “o mundo sempre foi assim”. E sabemos, “perdoem-me” os relativistas e os interessados do costume, que não o foi. Já não andamos a carregar blocos de pedra durante uma vida inteira, só descansando no Nilo, para a construção da pirâmide em louvor de um qualquer faraó. Este “sintoma” não se encontra, apenas, a nível lirico ou vocal. Vai-se, adicionalmente, desvalorizando a figura do front–man. Favorecendo a obscuridade pessoal – a “voz grave” – para o transpor para o panfleto gratuito e tão na moda denominado por “espirito de colaboração”.
Também não é raro o número de escritores que, actualmente, prefere não intervir politicamente ou dar opinião devido a esta difusa e desistente noção “democrática”. No fundo e sem recorrermos a eufemismos: é o medo. O “terror” da exposição pessoal num planeta inundado por comentários inflamados pelo marketing e pela venda apressada de livros. Que desaparecem dos escaparates com a mesma velocidade com que surgem.
Esta atitude não faz muito por uma democracia social real. Conduz a uma certa “asfixia” cultural. Quando o internauta ou o autor não se mostra e não intervém para além da esfera reduzida da repetição informativa que tem como ponto, principal, de referência as redes sociais. Onde, no fundo, nem em todos os assuntos “se pode” tocar. Devido a um tipo de moral que pretende salientar o “optimismo”, os “likes” e a “partilha”. Que “conecta” digitalmente mas que pouco faz pela verdade e pela realidade. Que deveriam, quando possível, ser expressas e escritas “para ninguém”. Como ideal: fingirmos que não somos apenas avatares e “amigos” para agradar. A informação, para que haja mudança, deve, em primeiro lugar, perturbar. Se estamos à espera de nos falsificarmos para termos mais seguidores através de um Twitter: não é, exactamente, a cultura que estamos a favorecer. Também não é o jornalismo. Nem mesmo o “jornalismo- cidadão”. Apenas um reforço do mesmo. Parece que convém não darmos muito de nós para não ofender o “concorrente” do lado. O que nos transforma, tendencialmente, em “humildes” papagueadores da “verdade” digital que suporta os meios que usamos para que possamos comentar a “realidade”. É mais fácil virarmo-nos para alvos “tradicionais”. Olharmos para o abuso das instituições actualmente em formação põe-nos em causa. Porque as utilizamos mais do que nunca. O que nos faz temer uma suposta contradição.
Voltaire diria que vivemos, mais do que nunca, num mundo de ingénuos. Num planeta de cândidos. Ou de cinicos? De cansados? Sem temer a bolha rebentar. Sem saber e , de certa forma, sem querermos saber que pode rebentar. “Alucinados” que estamos pelas promessas, obviamente “digitais”, da “sociedade da informação”. Sem percebermos que a forma como, pelo menos actualmente, se articula não é sinónimo de “conhecimento”. Ela é, quando muito, indício de puro “mercado”. Uma outra internet seria possível? Idealizemos.
Nem tudo se enquadra no que acabo de expor: vou apontar pequenos exemplos contra- corrente, nos diversos sectores, que penso merecerem serem levados em consideração: em termos jornalisticos existe o sempre atento Le Monde Diplomatique. Um ponto, incansável, de resistência. Vale a pena segui-lo. Em papel e na edição digital. Sabendo que não vive do ar. Mas sim à custa de subscrições. Um género de oásis que, na falta de atenção, vai escasseando. O El País: é raro o dia que não publique um artigo de opinião sobre os assuntos que resolvi aqui abordar. Portugal, nesta matéria, tem sido quase um deserto. Relativamente ao ensaio: existem alguns, bastante insistentes, autores. Como Evgeny Morozov. Conhecido, principalmente, devido a um primeiro livro: “The Net Delusion: How Not to Liberate The World”. Outro exemplo, acessível, é Nicholas Carr. Que publicou “The Shallows: What the Internet is Doing to Our Brains”. O artigo que escreveu no ano de 2008 para a Atlantic, “Is Google making us stupid?”, tem sido, desde então, amplamente debatido. Em termos televisivos convém estarmos atentos a uma série que está a ser rodeada por algum culto. Intitula-se Black Mirror e é uma criação de Charlie Brooker. A inclinação é mais ou menos caricatural. Mas devolve-nos alguma realidade. Como alguns medos e fantasmas adormecidos pelo utopismo tecno- científico deste início de século. Uma prova de coragem, no cinema, foi dada por Sofia Coppola. Através de “The Bling Ring” – em português foi traduzido como “O Gangue de Hollywood” -. O argumento baseia-se em factos reais: um grupo de adolescentes, obcecados com a fama, resolve assaltar casas de figuras públicas. O filme é uma alegoria ás questões de falta de privacidade actual: acabam por ser apanhados devido à utilização de redes sociais. Não posso deixar de apontar, para finalizar, um vídeo do grupo musical Placebo: “Too many friends”. Onde a intitulada “realidade aumentada” é amplamente parodiada. São apenas alguns exemplos. Há bastante mais. Mas, em termos proporcionais, é pouco. Precisamos de abrir caminho. De focos de luz: que façam perguntas não apenas sobre o que está errado com o passado. Mas, também, sobre o tipo de “soluções” que estamos a construir. Para que não sejamos enganados outra vez. E outra vez.